eu ando pelo mundo
prestando a atenção em cores
que eu não sei o nome*
Existe algo entre a feminilidade e a maternidade, que mobiliza no real do corpo da mulher, no imaginário de suas identificações e na sua posição subjetiva que resulta na impossibilidade de ser mulher, compensada na emergência de ser mãe e só mãe, um “colorido” de cores sem nome. Talvez um blues.
Passeio pelo escuro*
A angústia da mulher constitui na criança a vivência de um continuum da mãe. A criança se torna o objeto da mãe. A separação do corpo materno é vivida pela criança, ainda bebê, como um “buraco-negro”, um puro vazio.
E como uma segunda pela
Um calo, uma casca,
Uma cápsula protetora*
Uma criança despedaçada que teme desintegrar-se. Constituída de feridas psíquicas arcaicas que cobrem o “buraco”. Um corpo não pulsional, sem eros.
Para a criança se constituir enquanto sujeito não fragmentado, seria necessário que, por meio do contato da pele, vivenciasse os limites e a união entre as partes do corpo. A bipolaridade da pele também poderia garantir que a criança sentisse a pele tocar o objeto e ao mesmo tempo, ter a sensação de a pele ser tocada por este. Que o corpo fosse erotizado e que ocorresse o reconhecimento de algo externo separado da criança, de que existissem dois corpos. Estes processos assegurariam a possibilidade de uma separação do corpo-mãe do corpo-criança não desastrosa.
Eu ando pelo mundo
Divertindo gente,
Chorando ao telefone,
E vendo doer a fome
Nos meninos que têm fome*
Uma mulher com uma identificação nula ao lugar de mulher e não fálica ao lugar de mãe, pode ter paralisado no angustiante ato de cuidar da criança e na impossibilidade de humanizá-la. Uma criança com fome de amor, de desejo. Uma mãe sem desejo de ser mulher.
Eu ando pelo mundo
E meus amigos, cadê?
Minha alegria, meus cansaço
Meu amor cadê você?
Eu acordei
Não tem ninguém ao lado...*
Que posição subjetiva e que identificação imaginária vivenciou esta mulher? Se tomarmos a sociedade contemporânea como referência, a que alimenta o gosto pelo efêmero e que passado e futuro não são códigos psicológicos e sociais dominantes, mas tem o presente como momento fugaz, marcada pelo descartável. O sentimento de ruína é explicado pela sua impossibilidade de sentir-se valorizada, de sentir-se capaz de corresponder a seu eu ideal, uma vez que ela própria é descartável nesta sociedade. A impossibilidade de simbolizar a ausência, ou não conseguir lidar com uma perda, a perda inconsciente de si mesmo, da auto-estima. Se tudo é descartável e efêmero, assim a libido, o desejo, também o é.
Uma insatisfação com seu eu corporal diante das imperfeições e faltas por comparação com uma imagem hiper-real ou virtual impediria esta mulher de protagonizar um circuito pulsional com a criança, que sendo carne de sua carne, é um pedaço dela mesma. Há uma experiência contínua de falta e perda, de desconhecimento de si por identificação negativa com um outro, perpetuada no corpo da criança. Quem é ela? Quem é ela? Uma mãe.
*Fragmentos da composição "Esquadros" de Adriana Calcanhoto.
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