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segunda-feira, 28 de maio de 2012

As insígnias do Nome-do-pai


 ... por Polônio, um pai.


Com a mão sobre a cabeça de seu filho Laertes, prestes a partir...

(...) Vai, com a benção, vai! E trata de guardar estes poucos preceitos:
Não dá voz ao que pensares, nem transforma em ação um pensamento tolo.
Amistoso, sim, jamais vulgar. Os amigos que tenhas, já postos à prova, prende-os na tua alma com grampos de aço; Mas, não caleja a mão festejando qualquer galinho implume mal saído do ovo. 
Procura não entrar em nenhuma briga; mas, entrando, encurrala o medo no inimigo. 
Presta ouvido a muitos, tua voz a poucos. Acolhe a opinião de todos _ mas você decide. Usa roupas tão caras quanto tua bolsa permitir, mas nada de extravagâncias - ricas,  mas não pomposas. O hábito revela o homem.
(...) Não empreste nem peça emprestado: Quem empresta perde o amigo e o dinheiro; quem pede emprestado já perdeu o controle de sua economia.
E, sobretudo, isto: sê fiel a ti mesmo. Jamais serás falso pra ninguém.
Adeus. Que minha benção faça estes conselhos frutificarem em ti.


SHAKESPEARE, William. Hamlet. Trad.: Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2007, p. 29-30.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Amor e Psicanálise ( Jacques-Alain Miller)

Amor e Psicanálise (Jacques-Alain Miller) 

"Amar verdadeiramente alguém é acreditar que, ao amá-lo,  se alcançará a uma verdade sobre si. Ama-se aquele ou aquela que conserva a resposta, ou uma resposta, à nossa questão “Quem sou eu?" (Jacques-Alain Miller)
Psychologies: A psicanálise ensina alguma coisa sobre o amor?
Jacques-Alain Miller: Muito, pois é uma experiência cuja fonte é o amor. Trata-se desse amor automático, e frequentemente inconsciente, que o analisando dirige ao analista e que se chama transferência. É um amor fictício, mas é do mesmo estofo que o amor verdadeiro. Ele atualiza sua mecânica: o amor se dirige àquele que a senhora pensa que conhece sua verdade verdadeira. Porém, o amor permite imaginar que essa verdade será amável, agradável, enquanto ela é, de fato, difícil de suportar.
P.: Então, o que é amar verdadeiramente?
J-A Miller: Amar verdadeiramente alguém é acreditar que, ao amá-lo, se alcançará a uma verdade sobre si. Ama-se aquele ou aquela que conserva a resposta, ou uma resposta, à nossa questão "Quem sou eu?".
P.: Por que alguns sabem amar e outros não?
J-A Miller: Alguns sabem provocar o amor no outro, os serial lovers - se posso dizer - homens e mulheres. Eles sabem quais botões apertar para se fazer amar. Porém, não necessariamente amam, mais brincam de gato e rato com suas presas. Para amar, é necessário confessar sua falta e reconhecer que se tem necessidade do outro, que ele lhe falta. Os que crêem ser completos sozinhos, ou querem ser, não sabem amar. E, às vezes, o constatam dolorosamente. Manipulam, mexem os pauzinhos, mas do amor não conhecem nem o risco, nem as delícias. 
P.: "Ser completo sozinho”: só um homem pode acreditar nisso...
J-A Miller: Acertou! "Amar, dizia Lacan, é dar o que não se tem". O que quer dizer: amar é reconhecer sua falta e doá-la ao outro, colocá-la no outro. Não é dar o que se possui, os bens, os presentes: é dar algo que não se possui, que vai além de si mesmo. Para isso, é preciso se assegurar de sua falta, de sua "castração", como dizia Freud. E isso é essencialmente feminino. Só se ama verdadeiramente a partir de uma posição feminina. Amar feminiza. É por isso que o amor é sempre um pouco cômico em um homem. Porém, se ele se deixa intimidar pelo ridículo, é que, na realidade, não está seguro de sua virilidade.
P.: Amar seria mais difícil para os homens?
J-A Miller: Ah, sim! Mesmo um homem enamorado tem retornos de orgulho, assaltos de agressividade contra o objeto de seu amor, porque esse amor o coloca na posição de incompletude, de dependência. É por isso que pode desejar as mulheres que não ama, a fim de reencontrar a posição viril que coloca em suspensão quando ama. Esse princípio Freud denominou a "degradação da vida amorosa" no homem: a cisão do amor e do desejo sexual.
P.: E nas mulheres?
J-A Miller: É menos habitual. No caso mais frequente há desdobramento do parceiro masculino. De um lado, está o amante que as faz gozar e que elas desejam, porém, há também o homem do amor, feminizado, funcionalmente castrado. Entretanto, não é a anatomia que comanda: existem as mulheres que adotam uma posição masculina. E cada vez mais. Um homem para o amor, em casa; e homens para o gozo, encontrados na Internet, na rua, no trem...


P.: Por que "cada vez mais"?
J-A Miller: Os estereótipos socioculturais da feminilidade e da virilidade estão em plena mutação. Os homens são convidados a acolher suas emoções, a amar, a se feminizar; as mulheres, elas, conhecem ao contrário um certo “empuxo-ao-homem”: em nome da igualdade jurídica são conduzidas a repetir “eu também”. Ao mesmo tempo, os homossexuais reivindicam os direitos e os símbolos dos héteros, como casamento e filiação. Donde uma grande instabilidade dos papéis, uma fluidez generalizada do teatro do amor, que contrasta com a fixidez de antigamente. O amor se torna “líquido”, constata o sociólogo Zygmunt Bauman (1). Cada um é levado a inventar seu próprio “estilo de vida” e a assumir seu modo de gozar e de amar. Os cenários tradicionais caem em lento desuso. A pressão social para neles se conformar não desapareceu, mas está em baixa.
P.: “O amor é sempre recíproco”, dizia Lacan. Isso ainda é verdade no contexto atual? O que significa?
J-A Miller: Repete-se esta frase sem compreendê-la ou compreendendo-a mal. Ela não quer dizer que é suficiente amar alguém para que ele vos ame. Isso seria absurdo. Quer dizer: “Se eu te amo é que tu és amável. Sou eu que amo, mas tu, tu também estás envolvido, porque há em ti alguma coisa que me faz te amar. É recíproco porque existe um vai-e-vem: o amor que tenho por ti é efeito do retorno da causa do amor que tu és para mim. Portanto, tu não estás aí à toa. Meu amor por ti não é só assunto meu, mas teu também. Meu amor diz alguma coisa de ti que talvez tu mesmo não conheças”. Isso não assegura, de forma alguma, que ao amor de um responderá o amor do outro: isso, quando isso se produz, é sempre da ordem do milagre, não é calculável por antecipação.
P.: Não se encontra seu ‘cada um’, sua ‘cada uma’ por acaso. Por que ele? Por que ela?
J-A Miller: Existe o que Freud chamou de Liebesbedingung, a condição do amor, a causa do desejo. É um traço particular – ou um conjunto de traços – que tem para cada um função determinante na escolha amorosa. Isto escapa totalmente às neurociências, porque é próprio de cada um, tem a ver com sua história singular e íntima. Traços às vezes ínfimos estão em jogo. Freud, por exemplo, assinalou como causa do desejo em um de seus pacientes um brilho de luz no nariz de uma mulher!
P.: É difícil acreditar em um amor fundado nesses elementos sem valor, nessas baboseiras!
J-A Miller: A realidade do inconsciente ultrapassa a ficção. A senhora não tem idéia de tudo o que está fundado, na vida humana, e especialmente no amor, em bagatelas, em cabeças de alfinete, os “divinos detalhes”. É verdade que, sobretudo no macho, se encontram tais causas do desejo, que são como fetiches cuja presença é indispensável para desencadear o processo amoroso. As particularidades miúdas, que relembram o pai, a mãe, o irmão, a irmã, tal personagem da infância, também têm seu papel na escolha amorosa das mulheres. Porém, a forma feminina do amor é, de preferência, mais erotômana que fetichista : elas querem ser amadas, e o interesse, o amor que alguém lhes manifesta, ou que elas supõem no outro, é sempre uma condição sine qua non para desencadear seu amor, ou, pelo menos, seu consentimento. O fenômeno é a base da corte masculina.
P.: O senhor atribui algum papel às fantasias?
J-A Miller: Nas mulheres, quer sejam conscientes ou inconscientes, são mais determinantes para a posição de gozo do que para a escolha amorosa. E é o inverso para os homens. Por exemplo, acontece de uma mulher só conseguir obter o gozo – o orgasmo, digamos – com a condição de se imaginar, durante o próprio ato, sendo batida, violada, ou de ser uma outra mulher, ou ainda de estar ausente, em outro lugar.
P.: E a fantasia masculina?
J-A Miller: Está bem evidente no amor à primeira vista. O exemplo clássico, comentado por Lacan, é, no romance de Goethe (2), a súbita paixão do jovem Werther por Charlotte, no momento em que a vê pela primeira vez, alimentando ao numeroso grupo de crianças que a rodeiam. Há aqui a qualidade maternal da mulher que desencadeia o amor. Outro exemplo, retirado de minha prática, é este: um patrão quinquagenário recebe candidatas a um posto de secretária. Uma jovem mulher de 20 anos se apresenta; ele lhe declara de imediato seu fogo. Pergunta-se o que o tomou, entra em análise. Lá, descobre o desencadeante: ele havia nela reencontrado os traços que evocavam o que ele próprio era quando tinha 20 anos, quando se apresentou ao seu primeiro emprego. Ele estava, de alguma forma, caído de amores por ele mesmo. Reencontra-se nesses dois exemplos, as duas vertentes distinguidas por Freud: ama-se ou a pessoa que protege, aqui a mãe, ou a uma imagem narcísica de si mesmo.
P.: Tem-se a impressão de que somos marionetes!
J-A Miller: Não, entre tal homem e tal mulher, nada está escrito por antecipação, não há bússola, nem proporção pré-estabelecida. Seu encontro não é programado como o do espermatozóide e do óvulo; nada a ver também com os genes. Os homens e as mulheres falam, vivem num mundo de discurso, e isso é determinante. As modalidades do amor são ultra-sensíveis à cultura ambiente. Cada civilização se distingue pela maneira como estrutura a relação entre os sexos. Ora, acontece que no Ocidente, em nossas sociedades ao mesmo tempo liberais, mercadológicas e jurídicas, o “múltiplo” está passando a destronar o “um”. O modelo ideal do “grande amor de toda a vida” cede, pouco a pouco, terreno para o speed dating, o speed loving e toda floração de cenários amorosos alternativos, sucessivos, inclusive simultâneos.


P.: E o amor no tempo, em sua duração? Na eternidade?
J-A Miller: Dizia Balzac: “Toda paixão que não se acredita eterna é repugnante” (3). Entretanto, pode o laço se manter por toda a vida no registro da paixão? Quanto mais um homem se consagra a uma só mulher, mais ela tende a ter para ele uma significação maternal: quanto mais sublime e intocada, mais amada. São os homossexuais casados que melhor desenvolvem esse culto à mulher: Aragão canta seu amor por Elsa; assim que ela morre, bom dia rapazes! E quando uma mulher se agarra a um só homem, ela o castra. Portanto, o caminho é estreito. O melhor caminho do amor conjugal é a amizade, dizia, de fato, Aristóteles.
P.: O problema é que os homens dizem não compreender o que querem as mulheres; e as mulheres, o que os homens esperam delas...
J-A Miller: Sim. O que faz objeção à solução aristotélica é que o diálogo de um sexo ao outro é impossível, suspirava Lacan. Os amantes estão, de fato, condenados a aprender indefinidamente a língua do outro, tateando, buscando as chaves, sempre revogáveis. O amor é um labirinto de mal entendidos onde a saída não existe.
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Jacques-Alain Miller, psicanalista e responsável pela transmissão dos Seminários e de outros artigos de Jacques Lacan.
Entrevista publicada na Psychologies Magazine em outubro 2008. A entrevistadora foi Hanna Waar. 
(1) Bauman, Zygmunt. L’amour liquide, de la fragilité des liens entre les hommes. Hachette Littératures, « Pluriel », 2008.
(2) Les souffrances du jeune Werther de Goethe. LGF, « le livre de poche », 2008.
(3) Honoré de Balzac in La comédie humaine, vol. VI, « Études de mœurs : scènes de la vie parisienne ». Gallimard, 1978.
Tradução de Maria do Carmo Dias Batista.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Entrevista com Freud*: sobre a Felicidade sempre Insuficiente


Entrevista com Freud*: sobre a Felicidade sempre Insuficiente



Entrevistadora: Seguimos um caminho de acordo com nosso desejo?
Freud: o objetivo para o qual o princípio do prazer nos impele — o de nos tornarmos felizes — não é atingível; contudo, não podemos — ou melhor, não temos o direito — de desistir do esforço da sua realização de uma maneira ou de outra. 

Entrevistadora: Por que ao evitarmos algo indesejável, muitas vezes, acabamos por repeti-lo?
Freud: caminhos muito diferentes podem ser seguidos para isso; alguns dedicam-se ao aspecto positivo do objetivo, o atingir do prazer; outros o negativo, o evitar da dor. Por nenhum destes caminhos conseguimos atingir tudo o que desejamos. 

Entrevistadora: E se escolhermos um caminho muito diferente do "socialmente aceitável"?
Freud: Naquele sentido modificado em que vimos que era atingível, a felicidade é um problema de gestão da libido em cada indivíduo. Não há uma receita soberana nesta matéria que sirva para todos; cada um deve descobrir por si qual o método através do qual poderá alcançar a felicidade. 

Entrevistadora: Então, nossas escolhas...
Freud: toda a espécie de fatores irá influenciar a sua escolha. Depende da quantidade de satisfação real que ele irá encontrar no mundo externo, e até onde acha necessário tornar-se independente dele. Por fim, na confiança que tem em si próprio do seu poder de modificar conforme os seus desejos. Mesmo nesta fase, a constituição mental do indivíduo tem um papel decisivo, para além de quaisquer considerações externas.

Entrevistadora: decidimos cada passo de nossa caminhada, independente das pedras que encontramos no caminho...
Freud: o homem que é predominantemente erótico irá escolher em primeiro lugar relações emocionais com os outros; o tipo narcisista, que é mais auto-suficiente, procurará a sua satisfação essencial no trabalho interior da sua alma; o homem de ação nunca abandonará o mundo externo no qual pode experimentar o seu poder. 
Entrevistadora: Obrigada, Dr. Freud.

* Entrevista ficcional baseada em "A Civilização e os Seus Descontentamentos", Freud, 1930.

Desejo, saber...do desejo


Desejo, saber...do desejo



O desejo é enigmático, o sujeito é enigmático, para toscamente dizer pouco. 
Da lição XX de Lacan, "O desejo e sua interpretação", 1959, retira-se pérolas para quem deseja-as. Ei-las:

Diz Lacan, que a história do desejo se organiza em um discurso que se desenvolve no insensato_ o inconsciente. E que, oposto ao princípio de realidade, o desejo se apresenta como o tormento do sujeito.

Que é o sujeito? 
O sujeito se constitui na medida em que entra no significante, na medida em que é introduzido pela relação mais primordial do sujeito, a relação com o Outro.
É na medida em que o Outro é colocado como aquele que pode ou não desempenhar um certo papel, é que o Outro é instaurado como sujeito. Na medida em que o Outro é um sujeito como tal, que o sujeito se instaura e pode se instituir, ele mesmo, como sujeito. 
Assim se estabelece essa nova relação ao Outro, nesse Outro, a se fazer reconhecer como sujeito. Não mais como demanda, nem como amor, mas como sujeito. 

O que é desejo?
Em termos de alternativa significante, a necessidade do sujeito, que se instaura tudo que no decorrer vai estruturar a relação do sujeito a ele mesmo, que se chama o desejo.
O sujeito será interessado historicamente por todas as experiências com o Outro, o Outro maternal. Mas nada disso poderá esgotar a falta que existe ao nível do significante que o sujeito tem de se referenciar para se constituir como sujeito, ao nível do Outro. 
E nada de real da parte do Outro pode suprir, essa falta, que se produz no nível do Outro, enquanto lugar da palavra, não ao nível do Outro enquanto real.

Na medida em que o sujeito se encontra marcado dessa falha, da não garantia ao nível da verdade do Outro, terá de instituir o objeto, esse algo que é objeto a; que se encontra submetido a essa condição de expressar sua tensão última, que é o resto, o resíduo e que está à margem de todas essas demandas, e que nenhuma delas pode esgotar; esse algo que é destinado a representar uma falta e representá-la com uma tensão real do sujeito, seu tormento.

Dessa falta em relação à qual o sujeito terá de se referenciar. Isto Lacan chamou de "osso" da função de objeto no desejo, é o que vem em resgate do fato de que o sujeito não pode se situar no desejo  sem perder o mais essencial de sua vida. Em torno disto que Lacan cita Simone Weil, “se nós soubéssemos aquilo que o avaro tranca em sua caixa saberíamos, diz ela, muito sobre o desejo”.


terça-feira, 22 de maio de 2012

Ode ao gato ( Pablo Neruda)





Os animais foram imperfeitos, compridos  de rabo, tristes de cabeça. 

Pouco a pouco se foram compondo, fazendo-se paisagem, adquirindo pintas, graça, vôo. 

O gato, só o gato apareceu completo e orgulhoso: nasceu completamente terminado, anda sozinho e sabe o que quer.O homem quer ser peixe e pássaro.

A serpente quisera ter asas, o cachorro é um leão desorientado, 
O engenheiro quer ser poeta, a mosca estuda para andorinha, 
O poeta trata de imitar a mosca.

Mas o gato quer ser só gato e todo gato é gato do bigode ao rabo. 

Do pressentimento à ratazana viva, da noite até os seus olhos de ouro.
Não há unidade como ele, não tem a lua nem a flor tal contextura: é uma coisa só como o sol ou o topázio, e a elástica linha em seu contorno firme e sutil é como a linha da proa de uma nave. 
Os seus olhos amarelos deixaram uma só ranhura para jogar as moedas da noite. 

Oh pequeno imperador sem orbe, conquistador sem pátria.
Mínimo tigre de salão, nupcial sultão do céu das telhas eróticas, 
O vento do amor na intempérie reclamas quando passas e pousas quatro pés delicados no solo, cheirando, desconfiando de todo o terrestre, 
Porque tudo é imundo para o imaculado pé do gato.

Oh fera independente da casa, arrogante vestígio da noite, preguiçoso, ginástico e alheio, profundissimo gato, polícia secreta dos quartos, insignia de um desaparecido veludo, certamente não há enigma na tua maneira, talvez não sejas mistério, todo o mundo sabe de ti e pertence ao habitante menos misterioso, talvez todos acreditem, todos se acreditem donos, proprietários, tios de gatos, companheiros, colegas, díscipulos ou amigos do seu gato.

Eu não. Eu não subscrevo. Eu não conheço o gato. 
Tudo sei, a vida e seu arquipélago, o mar e a cidade incalculável, a botânica, o gineceu com os seus extrávios, o pôr e o menos da matemática, os funis vulcânicos do mundo, a casaca irreal do crocodilo, a bondade ignorada do bombeiro, o atavismo azul do sacerdote, mas não posso decifrar um gato. 

Minha razão resvalou na sua indiferença, os seus olhos tem números de ouro. 

Pablo Neruda. Navegaciones y Regresos, 1959.   

* Homenagem a todos os gatos que deixam perplexos os adultos e encantam as crianças...Para você Pablo, gato com nome de poeta que foi conhecer o desconhecido, e para Franz, que nos deixou no dia 29/07/2012, saudades de todos!    

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Help! Mais teatro na escola, por favor!


Help! Mais teatro na escola, por favor!


Muita imaginação e diversão para um futuro melhor (Matéria publicada em 07 de maio de 2012, no jornal "O popular do Paraná" - Araucária)
Vocês gostam da aula de teatro?
-Siiiiim! Ecoou o coro das crianças com grandes sorrisos e fantasias de época.
-E qual peça vocês vão apresentar?
-Romeu e Julieta!
-E de quem é essa peça?
- Shakespeare, agora não lembro o outro nome... William Shakespeare! Finalizaram eufóricas antes de começar a encenar um trecho da peça.”

Tanto no aspecto artístico como no pedagógico, o teatro auxilia a criança no seu crescimento cultural e na sua formação como indivíduo. A escola entra aí como apoio de base, um espaço de conhecimento e aprendizagem, ideal para desenvolver habilidades e sensibilidades ligadas à arte e educação. Um exemplo vivo, e de sucesso, dessa inserção é o que acontece na Escola David Carneiro, no Costeira, através do Programa do Governo Federal, “Mais Educação”, que propõe atividades no contraturno das aulas.

São ofertas educativas por meio de atividades optativas que foram agrupadas em macrocampos, como acompanhamento pedagógico, meio ambiente, esporte e lazer, direitos humanos, cultura e artes, cultura digital, prevenção e promoção da saúde, educomunicação, educação científica e educação econômica. Na escola, Inecê Gomes coordena as aulas de teatro desde 2011 e se sente realizada com o projeto e com a evolução de seus alunos: “Essas aulas são muito importantes, essas crianças têm a necessidade e a capacidade de criar cultura. Percebemos muitas diferenças nelas. Muitos não têm incentivo de casa e é necessário passar isso para os pais também. Teve criança que chegou aqui sem saber ler direito, mas por conta dos textos evoluiu nisso, além da concentração, organização, convívio, respeito, postura...”.

Antônio Lopes da Rocha, diretor da Escola, comemora o desenvolvimento do projeto no ano passado e os passos já dados na trajetória deste ano. Conforme contou, muitos alunos vêm de famílias desestruturadas e as aulas de contraturno e o convívio proporcionado por elas os recriam em novos olhares, objetivos e vínculos. “Mudaram da água para o vinho, os alunos melhoraram muito”, confirmou Rosângela Dudek, vice-diretora.

Ver o mundo, se ver no mundo, se perceber, perceber o outro e a sua relação com o outro, essas são algumas das reflexões geradas pela arte. Dessa forma, de acordo com a visão pedagógica, o teatro tem a função de mostrar o comportamento social e moral, através do aprendizado de valores e do bom relacionamento com as pessoas. A Escola oferece almoço para os alunos para que permaneçam no local e façam parte das atividades propostas. São crianças e jovens do 1º ao 9º ano que têm a oportunidade de desenvolver novas habilidades, sem necessitar ficar na rua ou em casa vendo televisão. Para participar, é necessário ser aluno da Escola e se dedicar às atividades.


Turminha da peça “Romeu e Julieta” está ansiosa e ensaia bastante para fazer uma bela apresentação no Teatro da Praça
Apresentações
No final de 2011, o grupo que participa das oficinas de teatro se apresentou e o sucesso foi tão grande que a dosagem será repetida neste ano. No dia 22 de junho, os pequenos apresentarão no Teatro da Praça a peça “Romeu e Julieta”, enquanto os maiores irão apresentar “O Mistério de Feiurinha”. A adaptação e as montagens são feitas em conjunto, conforme contou Inecê. “Ano passado fui com eles até a Biblioteca, lemos alguns trechos de histórias e conseguimos escolher essas”, contou. A professora afirma que os alunos queriam uma peça que trouxesse amor, morte e luta, itens que fazem parte de suas realidades. Os alunos se divertem com os ensaios e botam a imaginação para funcionar. As crianças aprendem a desenvolver estratégias, a criar improvisações para se sair bem de uma situação, a elaborar histórias, aumentando assim sua capacidade criativa que lhes garantirá no futuro um bem, tanto para si mesmas, como para as pessoas que estão ao seu redor e fazem parte de sua vida.http://www.opopularpr.com.br/noticia.php?id=8673&back=1#opcoes
 

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Quem é ela? Quem é ela? (para as mães)



eu ando pelo mundo
prestando a atenção em cores 
que eu não sei o nome*


 
Existe algo entre a feminilidade e a maternidade, que mobiliza no real do corpo da mulher, no imaginário de suas identificações e na sua posição subjetiva que resulta na impossibilidade de ser mulher, compensada na emergência de ser mãe e só mãe, um “colorido” de cores sem nome. Talvez um blues.

 
Passeio pelo escuro*

A angústia da mulher constitui na criança a vivência de um continuum da mãe. A criança se torna o objeto da mãe. A separação do corpo materno é vivida pela criança, ainda bebê, como um “buraco-negro”, um puro vazio.

 
E como uma segunda pela
Um calo, uma casca, 
Uma cápsula protetora*


Uma criança despedaçada que teme desintegrar-se. Constituída de feridas psíquicas arcaicas que cobrem o “buraco”. Um corpo não pulsional, sem eros.
Para a criança se constituir enquanto sujeito não fragmentado, seria necessário que, por meio do contato da pele, vivenciasse os limites e a união entre as partes do corpo. A bipolaridade da pele também poderia garantir que a criança sentisse a pele tocar o objeto e ao mesmo tempo, ter a sensação de a pele ser tocada por este. Que o corpo fosse erotizado e que ocorresse o reconhecimento de algo externo separado da criança, de que existissem dois corpos. Estes processos assegurariam a possibilidade de uma separação do corpo-mãe do corpo-criança não desastrosa. 


Eu ando pelo mundo
 Divertindo gente,
 Chorando ao telefone,
E vendo doer a fome
Nos meninos que têm fome*


Uma mulher com uma identificação nula ao lugar de mulher e não fálica ao lugar de mãe, pode ter paralisado no angustiante ato de cuidar da criança e na impossibilidade de humanizá-la. Uma criança com fome de amor, de desejo. Uma mãe sem desejo de ser mulher.


Eu ando pelo mundo
E meus amigos, cadê?
Minha alegria, meus cansaço
Meu amor cadê você?
Eu acordei
Não tem ninguém ao lado...*


Que posição subjetiva e que identificação imaginária vivenciou esta mulher? Se tomarmos a sociedade contemporânea como referência, a que alimenta o gosto pelo efêmero e que passado e futuro não são códigos psicológicos e sociais dominantes, mas tem o presente como momento fugaz, marcada pelo descartável. O sentimento de ruína é explicado pela sua impossibilidade de sentir-se valorizada, de sentir-se capaz de corresponder a seu eu ideal, uma vez que ela própria é descartável nesta sociedade. A impossibilidade de simbolizar a ausência, ou não conseguir lidar com uma perda, a perda inconsciente de si mesmo, da auto-estima. Se tudo é descartável e efêmero, assim a libido, o desejo, também o é.
Uma insatisfação com seu eu corporal diante das imperfeições e faltas por comparação com uma imagem hiper-real ou virtual impediria esta mulher de protagonizar um circuito pulsional com a criança, que sendo carne de sua carne, é um pedaço dela mesma. Há uma experiência contínua de falta e perda, de desconhecimento de si por identificação negativa com um outro, perpetuada no corpo da criança. Quem é ela? Quem é ela? Uma mãe.

*Fragmentos da composição "Esquadros" de Adriana Calcanhoto.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Adolescência: sinais, caracteres, marcas, nome...


   A adolescência passou a ser estudada em seus vários aspectos sob o ponto de vista psicológico no século XX e, o primeiro estudo publicado sobre esta fase da vida aconteceu em 1904, quando Stanley Hall, psicólogo americano, enfatizou o entendimento da adolescência como amadurecimento biológico e descreveu a vida emotiva dos adolescentes como oscilantes e com tendências contraditórias. Outeiral (1984)  definiu a puberdade como “um processo biológico que inicia entre nove e 14 anos e se caracteriza pelo surgimento de uma atividade hormonal que desencadeia os chamados caracteres sexuais secundários”, diferente da adolescência que para o autor é “basicamente um fenômeno psicológico e social”.
            A adolescência pode ser também considerada como um período de transição da infância para a fase adulta, situação na qual novos ajustamentos e as mudanças fisiológicas e psicológicas surgem e demarcam uma sucessão de instabilidades necessárias para que o adolescente estabeleça sua identidade, sendo o objetivo fundamental deste momento da vida (ABERASTURY & KNOBEL, 1981).
      O adolescente e o impacto visual: utilizam muitos acessórios, bijuterias, roupas “transadas”, bonés e piercing

As vestes, concebidas como extensões ou prolongamentos do próprio corpo, adquirem para o adolescente um significado todo peculiar. “Já que não posso alterar meu corpo, com o qual estou descontente, modifico minha roupa”, dizia-me certa vez um adolescente. Mas as vestimentas, assim como os adornos e adereços usados pelos adolescentes, bem como o modo de cortar ou (des) pentear os cabelos, podem igualmente servir de código para expressar uma identidade tribal (OSORIO, 1989).

            Os adolescentes são igualmente ousados na gestualidade: dançam, saltam e fazem piruetas. A performance também faz parte desse processo de reorganização da identidade, como uma forma que o adolescente encontra de mostrar seu corpo e suas habilidades.  A constante utilização de apelidos, segundo Oliveira (2004), é um “sinal distintivo” do adolescente que o coloca como membro ativo, participante de um todo grupal: forma de como o grupo insere o adolescente numa identidade coletiva e ao mesmo tempo, deste se inserir e ser aceito no grupo.

Essa uniformidade é o que proporcionaria a segurança e estima pessoal, há um processo de identificação de massa, onde todos se identificam com cada um. O adolescente não pode separar-se da turma nem de seus caprichos ou modas. Por isso, inclina-se às regras do grupo, em relação à moda, vestimentas, costumes, preferências de todos os tipos, etc (ABERASTURY & KNOBEL, 1981).

     O líder se destaca por ser arrojado, colocando-se sempre como superior e dirigindo os demais. No processo grupal, assim como em toda sociedade, há um sistema de hierarquia: haverá sempre alguém que se encarregará de dar o modelo: um líder, herói ou figura de identificação com certo status e poder.
      A divisão de status geralmente segue um ritual onde a auto-afirmação individual é bem marcada no grupo: O mais forte bate no mais fraco consolidando através da agressão sua imagem onipotente, rito de admissão ao grupo. Esse comportamento é também uma válvula de escape dos adolescentes, uma das funções dos rituais de passagem, segundo alguns autores como Van Gennep (RIVIÉRE, 1996).
            Esse procedimento pode confirmar a hipótese de que atitudes anti-sociais ou associais são reforçadas pelo grupo. Unidos contra os “inimigos” eles buscam no grupo a cumplicidade para seus comportamentos e os laços de amizade. No grupo eles têm forças para enfrentar tudo e todos, de acordo com Freud (1989) “o sujeito abandona seu ideal do eu e o substitui pelo ideal do grupo, tal como é corporificado no líder.”
            A queixa maior dos adultos é a indisciplina: ter limites, de saber o que é proibido e o que é permitido para se orientar no mundo é uma construção em continuum na esfera social, através da lei que lhe assegura uma referência na qual ele poderá estabelecer uma escala de valores ou código de ética próprio.
         A  atitude social reivindicatória, presente na adolescência, Aberastury & Knobel (1981) considera fundamental para o desenvolvimento evolutivo do indivíduo, como uma “cristalização na ação do que já ocorreu no pensamento”. Essa agressividade exteriorizada é um aspecto muito comum do adolescente, pois se num primeiro momento (infância) as coisas só adquirem sentido através da palavra: eu tenho um nome, portanto significo algo para o outro; na adolescência, o jovem utiliza também a linguagem como um instrumento de auto-afirmação, dependendo de como ele fala, aponta sua posição no mundo. As respostas ásperas, porém incisivas e pontuais, demonstram sua capacidade de sublimar-se diante da suposta inferioridade que a sociedade lhe impõe.
         As pichações constantes em paredes, muros, portas de banheiros e carteiras escolares também são formas encontradas pelo adolescente para “deixar a sua marca, inscrever seu nome e demarcar um território que ele simbolicamente domina”, que segundo RITO (1993), difere da agressão que é praticado com o fim de ferir ou prejudicar alguém.
         O adolescente tanto pode nos assombrar quanto nos arrebatar na medida em que aceitamos a sua condição de sofrimento por não perceber ainda seu lugar no mundo e que resiste a todo esse processo através de suas demandas lúdicas e irônicas. 

ABERASTURY, Arminda & KNOBEL, Maurício. Adolescência normal: Um enfoque psicanalítico. Porto Alegre: Artes Médicas, 1981.
OLIVEIRA, S. J. Brasil: um país onde a adoção de apelido tem um privilégio legal inexistente ao prenome. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 219, 11 fev. 2004. 
FREUD, Sigmund.  Psicologia de grupo e a análise do ego. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18). Rio de Janeiro: Imago, 1989.
OSORIO, L.C. Adolescente Hoje. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.
OUTEIRAL, J.O. Adolescer: estudos sobre adolescência. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1994.
RITO, L. Adolescência: um lance que rola. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
RIVIÉRE, C. Os ritos profanos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

A hora seguinte e a hora que vem depois...


Três mulheres em momentos distintos e distantes no tempo e espaço, unidas pelo mesmo fio condutor: o mundo feminino. Uma mulher, Virgínia, dividida em três: a própria Virgínia Woolf, a parte que se vai; Clarissa Vaughn, a parte que une e Laura Brown, a parte que fica para presenciar a hora que vem depois.


A angústia de vivenciar minuto a minuto, hora após hora situações cotidianas, tão ligadas a objetos banais que transportam sentimentos, memórias de um tempo que jamais voltará, a lembrança de uma obrigação convencionada por outros ou mesmo pela própria incapacidade de romper com o inequívoco, une três mulheres e seu extraordinário mundo banal. As rosas amarelas. “Clarissa põe uma dúzia de rosas amarelas num vaso. Leva as flores para a sala, coloca o vaso sobre a mesinha de centro...”. Clarissa se constrange por ser demasiadamente óbvia.
As rosas amarelas reaparecem no funeral, feito pelos sobrinhos, de “uma passarinha” no jardim de Virgínia Woolf. Angélica, garotinha sensível aceita a sugestão da tia Virgínia em colocar as rosas amarelas ao redor do pássaro morto: “Virgínia ainda se demora alguns instantes ao lado do pássaro morto em seu círculo de rosas. Podia ser uma espécie de chapéu. Podia ser o elo perdido entre a chapelaria e a morte”.
Um livro que está sendo escrito por Virgínia e lido num outro momento por Laura Brown e a própria “Mrs. Dalloway” constituem outra conexão.
Um beijo na boca entre Laura Brown e sua vizinha Kitty. Um beijo em que os lábios apenas se tocam levemente, “descansam a boca, uma na outra”. Um beijo presenciado pelo filho de Laura, de três anos, que testemunha com curiosidade e suspeita.
Outro beijo, entre Virgínia e sua irmã Vanessa. Um beijo inocente, na boca. Delicioso e proibido, às costas de Nelly, a criada.

As rosas, um livro, um beijo. Um mundo feminino, desnudado, exposto. Não há nada de tão genial, terrível ou bizarro do que a volúpia, a vontade cega de beijar alguém, ou talvez o suicídio. Entre fazer um bolo de aniversário para o marido, escrever um livro ou organizar uma festa para um amigo moribundo, uma série de pequenos obstáculos triviais impedem três mulheres de seguirem adiante ou que as lance, como que quase as obrigando a não parar.

A hora seguinte do ato ou do não ato é que perturba a decisão. Não existe um momento preciso ou um fato único que a incite: um dia colocam-se pedras no bolso, ou escorrega-se delicadamente do parapeito do quinto andar dum prédio de Nova York.
A hora que vem depois não nos será mais revelada, somente nos momentos que antecedem a partida. Virginia, com os bolsos cheios de pedras, cabelos flutuantes, deixa uma carta a seu marido Leonard, “Não creio que duas pessoas poderiam ter sido mais felizes do que nós fomos. V.”, minutos antes de Richard desaparecer diante do olhar incrédulo de Clarissa, Mrs. Dalloway, diz: “Acho que ninguém pode ter sido mais feliz do que nós fomos.”
Laura Brown, personagem que resiste, se questiona sobre como ela ou qualquer pessoa pode fazer algo assim. Laura representa a parte feminina que aceita, suporta e que se permite a fazer uma loucura: sair no meio da tarde, deixando seu filho com a vizinha, alugar um quarto de hotel e deleitar-se na leitura de um livro, “Mrs. Dalloway”. O bolo para seu marido está feito não como ela sonhou, mas o fez, cumpriu seu dever de esposa. O bolo, mais um personagem fascinante que desencadeia emoções e dúvidas: Não, Laura não se suicidará jamais, mas poderia, naquele minuto, naquela hora, no quarto de hotel.
Há a aproximação constante das personagens e há o distanciamento, físico e temporal: há os momentos em que as personagens se unem, fundem-se, tornam-se uma só pessoa, descobrem-se mutuamente, são todas uma “Virgínia”, uma única mulher, num mundo banal, criando situações de fuga, e de busca de um prazer poético e mórbido. Em outros momentos, desdobram-se, distanciam-se a passos largos. A Virgínia parece renunciá-las, quando renuncia a si mesma.
Histórias que se cruzam num dia na vida das personagens, as horas passam, as coisas se definem, cada qual recebe o que lhe é de direito: uma carta de despedida num envelope azul, um bolo de duas camadas de glacê ou uma poltrona desocupada, com o enchimento escapando pelas costuras.

Está na hora deste dia acabar. Vive-se a vida, cumpre-se o dever, escreve-se livros...Alguns se atiram da janela, outros se afogam, tomam pílulas...Existe apenas isto como consolo: uma hora...

Três mulheres, uma real e duas fictícias, coabitando numa história fascinante de vida e morte. Virgínia Woolf se resolve, se define e cumpre um dever: “... como escavo lindas cavernas por trás das personagens; acho que isso me dá exatamente o que quero: humanidade, humor e profundidade...”
Mulheres comuns, situações prosaicas. A profundidade do fútil em contraste com as personagens vulneráveis, porém decididas.

Mulheres construtoras de um mundo real e insípido em um lugar habitável, preenchendo os pequenos espaços de amargura e sofrimento com pequenas doses de ternura, amor, afeto; mostrando que no ato comum reside a dignidade e sublimação. Inecê, novembro de 2000.