Três mulheres em momentos distintos e distantes no tempo e espaço, unidas pelo mesmo fio condutor: o mundo feminino. Uma mulher, Virgínia, dividida em três: a própria Virgínia Woolf, a parte que se vai; Clarissa Vaughn, a parte que une e Laura Brown, a parte que fica para presenciar a hora que vem depois.
A angústia de vivenciar minuto a minuto, hora após hora situações cotidianas, tão ligadas a objetos banais que transportam sentimentos, memórias de um tempo que jamais voltará, a lembrança de uma obrigação convencionada por outros ou mesmo pela própria incapacidade de romper com o inequívoco, une três mulheres e seu extraordinário mundo banal. As rosas amarelas. “Clarissa põe uma dúzia de rosas amarelas num vaso. Leva as flores para a sala, coloca o vaso sobre a mesinha de centro...”. Clarissa se constrange por ser demasiadamente óbvia.
As rosas amarelas reaparecem no funeral, feito pelos sobrinhos, de “uma passarinha” no jardim de Virgínia Woolf. Angélica, garotinha sensível aceita a sugestão da tia Virgínia em colocar as rosas amarelas ao redor do pássaro morto: “Virgínia ainda se demora alguns instantes ao lado do pássaro morto em seu círculo de rosas. Podia ser uma espécie de chapéu. Podia ser o elo perdido entre a chapelaria e a morte”.
Um livro que está sendo escrito por Virgínia e lido num outro momento por Laura Brown e a própria “Mrs. Dalloway” constituem outra conexão.
Um beijo na boca entre Laura Brown e sua vizinha Kitty. Um beijo em que os lábios apenas se tocam levemente, “descansam a boca, uma na outra”. Um beijo presenciado pelo filho de Laura, de três anos, que testemunha com curiosidade e suspeita.
Outro beijo, entre Virgínia e sua irmã Vanessa. Um beijo inocente, na boca. Delicioso e proibido, às costas de Nelly, a criada.
As rosas, um livro, um beijo. Um mundo feminino, desnudado, exposto. Não há nada de tão genial, terrível ou bizarro do que a volúpia, a vontade cega de beijar alguém, ou talvez o suicídio. Entre fazer um bolo de aniversário para o marido, escrever um livro ou organizar uma festa para um amigo moribundo, uma série de pequenos obstáculos triviais impedem três mulheres de seguirem adiante ou que as lance, como que quase as obrigando a não parar.
A hora seguinte do ato ou do não ato é que perturba a decisão. Não existe um momento preciso ou um fato único que a incite: um dia colocam-se pedras no bolso, ou escorrega-se delicadamente do parapeito do quinto andar dum prédio de Nova York.
A hora que vem depois não nos será mais revelada, somente nos momentos que antecedem a partida. Virginia, com os bolsos cheios de pedras, cabelos flutuantes, deixa uma carta a seu marido Leonard, “Não creio que duas pessoas poderiam ter sido mais felizes do que nós fomos. V.”, minutos antes de Richard desaparecer diante do olhar incrédulo de Clarissa, Mrs. Dalloway, diz: “Acho que ninguém pode ter sido mais feliz do que nós fomos.”
Laura Brown, personagem que resiste, se questiona sobre como ela ou qualquer pessoa pode fazer algo assim. Laura representa a parte feminina que aceita, suporta e que se permite a fazer uma loucura: sair no meio da tarde, deixando seu filho com a vizinha, alugar um quarto de hotel e deleitar-se na leitura de um livro, “Mrs. Dalloway”. O bolo para seu marido está feito não como ela sonhou, mas o fez, cumpriu seu dever de esposa. O bolo, mais um personagem fascinante que desencadeia emoções e dúvidas: Não, Laura não se suicidará jamais, mas poderia, naquele minuto, naquela hora, no quarto de hotel.
Há a aproximação constante das personagens e há o distanciamento, físico e temporal: há os momentos em que as personagens se unem, fundem-se, tornam-se uma só pessoa, descobrem-se mutuamente, são todas uma “Virgínia”, uma única mulher, num mundo banal, criando situações de fuga, e de busca de um prazer poético e mórbido. Em outros momentos, desdobram-se, distanciam-se a passos largos. A Virgínia parece renunciá-las, quando renuncia a si mesma.
Histórias que se cruzam num dia na vida das personagens, as horas passam, as coisas se definem, cada qual recebe o que lhe é de direito: uma carta de despedida num envelope azul, um bolo de duas camadas de glacê ou uma poltrona desocupada, com o enchimento escapando pelas costuras.
Está na hora deste dia acabar. Vive-se a vida, cumpre-se o dever, escreve-se livros...Alguns se atiram da janela, outros se afogam, tomam pílulas...Existe apenas isto como consolo: uma hora...
Três mulheres, uma real e duas fictícias, coabitando numa história fascinante de vida e morte. Virgínia Woolf se resolve, se define e cumpre um dever: “... como escavo lindas cavernas por trás das personagens; acho que isso me dá exatamente o que quero: humanidade, humor e profundidade...”
Mulheres comuns, situações prosaicas. A profundidade do fútil em contraste com as personagens vulneráveis, porém decididas.
Mulheres construtoras de um mundo real e insípido em um lugar habitável, preenchendo os pequenos espaços de amargura e sofrimento com pequenas doses de ternura, amor, afeto; mostrando que no ato comum reside a dignidade e sublimação. Inecê, novembro de 2000.
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