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A criança é confrontada com o fato de que fora da família circulam outros discursos... |
Entrevistadora: Atualmente, os novos papéis das mulheres no mercado de trabalho e as
inovações produzidas pela ciência, faz alguns anos, levam a cenários
impensáveis relativos aos modos de reprodução. O que tem para dizer a
psicanálise diante disso?
Eric Laurent: Em todas estas variações ou
criações diversas, discursos distintos vão entrar em conflito sobre o que são o
pai, ou a mãe, em cada caso. Mas o que vemos é que ninguém quer ter filhos sem
pais. É muito evidente, as brigas jurídicas das comunidades gay e lésbicas para
serem reconhecidas como pais e mães de filhos, são para poder utilizar os nomes
da família. A criança é confrontada com o fato de que fora da família circulam
outros discursos. Como então orientar-se, quando, por exemplo, a criança é
concebida por fertilização assistida com doador anônimo? Os pequenos na escola
lhe dizem: Onde está teu pai? E a criança responde: “Eu não tenho pai”. Como
não vai ter um pai? Isso é impossível... E então, como se vai responder e
sustentar isso? Como se vai inventar uma solução, um discurso possível? A
psicanálise pode, precisamente, nessas circunstâncias ajudar a criança, a mãe,
a poderem orientar-se num espaço no qual seja possível usar os termos pai-mãe
de uma maneira compatível com o discurso comum.
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A psicanálise pode ajudar a criança a orientar-se num espaço no qual seja possível usar os termos pai-mãe de maneira compatível com o discurso comum.. |
Entrevistadora: Nos momentos de
grandes mudanças as crianças são as primeiras vítimas, são os primeiros a
sofrer o impacto dessas mudanças. Quais são as questões em jogo para as crianças
que estão crescendo?
Eric Laurent: Múltiplas. As formas de patologia
do laço social com as crianças e entre as crianças, vêm através das queixas dos
que estão a cargo delas, especialmente dos pedagogos, com o papel essencial que
agora desempenha a escola na civilização. Não faz muito tempo que a escola tem
este papel tão importante para criar as crianças. Antes, a articulação com a
religião, a moral, o Estado, o exército, tinham um peso, havia uma variedade de
instituições. Cada vez mais se reduz o peso destas para centrar-se na grande
instituição escolar, que recolhe as crianças e trata de ordená-las a partir do
saber. Uma dificuldade para as crianças de hoje (e o vemos na enorme quantidade
de crianças diagnosticadas com déficit de atenção ou hiperatividade), é a de
poderem ficar sentadas cinco horas numa escola, o que não acontecia em outras
civilizações. O curioso é que parece como uma epidemia o fato de que há mais e
mais crianças que não podem renunciar a este gozo do corpo a corpo, das brigas,
a agressão física, sem falar da violência desproporcional característica das
turmas de adolescentes. Todo este sofrimento funda a idéia de uma patologia da
infância e da adolescência. Diz-se que as crianças não suportam as proibições,
não toleram as regras.
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Há mais e mais crianças que não podem renunciar a este gozo do corpo a corpo, das brigas, da agressão física, sem falar da violência de adolescentes... |
Entrevistadora: Poderia esclarecer um pouco mais o que acontece agora nas escolas?
Eric Laurent: Ao impor a educação universal e
dizer que todas as crianças têm direitos iguais, ao colocá-las todas no mesmo
dispositivo, há patologias que entram dentro deste dispositivo escolar que não
estavam lá antes. Por outro lado, com o aumento da precariedade do mundo do
trabalho, cada vez mais, pela pressão que existe, as crianças são abandonadas.
Antes tinham mães para se ocuparem com elas. Agora a televisão se ocupa. A
televisão é como uma medicação, é como dar um hipnótico: fazer dormir... É uma
medicação que utilizam, tanto as crianças como os adultos, para ficarem
tranquilos diante das bobagens da tela. Mas, a televisão comum a toda a família
não é a oração coletiva da tradição, aquela que permitia vincular os membros da
família através dos rituais. Quando o único ritual é a televisão, comer diante
dela, falar sobre ela ou ficar em silêncio diante desse aparato, isto permite
articular pouco esta posição do pai entre proibição e autorização. A escola é,
então, precisamente a que articula esta função: os professores aparecem como
representantes dos ideais e isto aguça a oposição entre crianças e o
dispositivo escolar, transformando as patologias, que não podem se reduzir
estritamente a algo biológico nem a algo cultural, na imbricação destas dentro
do dispositivo da escola.
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A televisão é como uma medicação (...) mas não é a oração coletiva da tradição, aquela que permitia vincular os membros da família através dos rituais... |
Entrevistadora: Lewis e Tolkien foram mencionados como duas pessoas que a partir da literatura quiseram propor modelos
identificatórios possíveis. Numa época de queda dos ideais, como orientar as
crianças nesse sentido?
Eric Laurent: A literatura é sempre uma
excelente via para orientar-se. Depois da queda da Primeira Guerra Mundial, da
queda dos ideais, os intelectuais estavam preocupados em como se orientar, e
orientar a geração que adviria. Alguns escritores explicitamente pensaram em
elaborar, com sua obra, uma maneira de proteger as crianças da tentação do
niilismo, e orientá-las na cultura e nas dificuldades da civilização,
apresentar figuras nas quais o desejo pudesse articular-se num relato. Com O Senhor dos Anéis, Tolkien fez uma
tentativa de propor às crianças, aos jovens, uma versão da religião, um
discurso sobre o bem e o mal, uma articulação sobre o gozo, os corpos, as
transformações do corpo, todos esses mistérios do sexo, do mal, que atravessa
uma criança; versões da paternidade. Tolkien conseguiu algo: há muitas crianças
para as quais o único discurso que conheceram e que lhes interessa sobre isto é
O Senhor dos Anéis nos três
episódios. Da mesma maneira, um escritor católico, como C.S. Lewis fez com as Crônicas de Nárnia uma versão da
mitologia cristã sobre a abordagem dos temas do bem e do mal, da paternidade,
da sexualidade. Graças ao cinema, Tolkien saiu de seus anos trinta, mas para
uma geração foi Harry Potter que articula a diferença entre o mundo dos humanos
e o mundo ideal dos bruxos, povoado de ameaças, onde o bem e o mal se
apresentam como versões do discurso.
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Com "O Senhor dos Anéis", Tolkien fez uma tentativa de propor às crianças, aos jovens, uma versão da religião, um discurso sobre o bem e o mal, uma articulação sobre o gozo, os corpos, as transformações do corpo, todos esses mistérios do sexo, do mal, que atravessa a criança... |
Entrevistadora: O que podem encontrar as crianças na literatura?
Eric Laurent: Harry Potter foi, para muitas
crianças, inclusive as minhas, uma companhia: ir crescendo da infância à
adolescência ao longo dos cinco ou seis tomos da história. Ademais, apresentou
figuras de identificação muito úteis. Uma criança podia prestar atenção ao que
lhe dizia Harry Potter, precisamente, sobre como se articulam o bem e o mal, sobre
como devem se comportar na vida e como manejar as aparências e os sentimentos
contraditórios que alguém pode conhecer ao mesmo tempo. São ferramentas para
salvar as gerações da tentação do niilismo, do pensar que não há nada que valha
a pena como discurso. Quando nada vale como discurso, há violência. O único
interesse, então, é atacar o outro. A crise dos ideais que se abriu com o fim
da Primeira Guerra não se desvaneceu. A que deveríamos prestar atenção? Hoje
vemos um chamado a uma nova ordem moral, apoiada no retorno da religião como
moral quotidiana. Quando na Europa há violência nos subúrbios, faz-se um
chamado aos imãs muçulmanos para que dirijam um discurso de paz aos jovens da
imigração. Também aos pais, para tratar de ordenar um pouco o caos engendrado
por esses jovens desamparados, que manifestam condutas estritamente
autodestrutivas pela desesperança em que estão afundados. Na esfera política,
através da famosa oposição entre as questões de temas e valores, vemos que
agora o tema é moral. Há uma tendência a pensar que para voltar a obter uma
certa calma na civilização, necessita-se multiplicar as proibições, que a
tolerância zero é muito importante para restaurar a firmeza da ordem, que as
pessoas tenham o temor da lei para lutar contra seus maus costumes. Os
analistas, diante desta restauração da lei moral, sabem que toda moral comporta
um revés, que é um empuxo superegóico à transgressão. Precisamente, a idéia dos
analistas em sua experiência clínica é que sabem que quando a lei se apresenta
somente como proibição, inclusive proibição feroz, provoca um empuxo feroz,
seja à autodestruição, seja à destruição do outro que vem somente proibir. Há
que autorizar aos sujeitos a respeitar-se a si mesmos, não somente a pensar
como os que têm que padecer a interdição, senão que podem reconhecer-se na
civilização. Isto implica não abandoná-los, falar-lhes mais além da proibição,
falar a esses jovens que têm estas dificuldades para que possam suportar uma
lei que proíbe, mas que autoriza também outras coisas. Há que falar-lhes de uma
maneira tal que não sejam somente sujeitos que têm que entrar nestes discursos
de maneira autoritária, porque se fizer isso, vai provocar uma reação forte com
sintomas sociais que vão manifestar a presença da morte.
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Temos que criar as crianças de uma maneira tal qual logrem apreciar-se a si mesmas, que tenham lugar, e que não seja um lugar de desperdício. |
Entrevistadora: Como criar as crianças nesta época?
Eric Laurent: Temos que criar as crianças de
uma maneira tal que logrem apreciar-se a si mesmas, que tenham um lugar, e que
não seja um lugar de desperdício. Na economia global atual, o único trabalho
que pode inscrever-se é um de alta qualificação, ao qual nem sempre vão ter
acesso. Não podemos pensar que vamos sair na frente somente com a idéia de que
se alguém trabalha bem e tem um diploma, vai encontrar um trabalho. Há crianças
que não vão entrar e, apesar disso, têm que ter um lugar na nossa civilização.
Não podemos abandoná-las. E este é o desafio mais importante que temos, o dever
que nós temos diante delas. Conceber um discurso que possa alojá-los dentro da
economia global.
* Por Verônica Rubens. Tradução de Maria Luiza Caldas.
* Eric Laurent é um dos continuadores do ensino de Jacques Lacan.
Nota
1. In: La Nación, Edición Impresa
Julho/2007